Lispector, Clarice. Água viva. Editora Rocco, outubro de 2020.
Lispector, Clarice. Água viva. Editora Rocco, outubro de 2020.
Água Viva (Clarice Lispector)
A profundidade dessa obra de Clarice me introduziu de modo tão agressivo, que tenho dois motivos para dizer ser difícil uma resenha sobre a obra: primeiro porque Água Viva não pertence a nenhum gênero literário clássico. Não tem início, objetivo ou mesmo uma trama que dê para tirar alguma história a ser lembrada e tudo mais. É um ensaio sem objetivo de ser algo. Gostei disso, aliás, porque eu não tenho pretensão alguma para além da minha dúvida e nem mesmo sei o que estou fazendo aqui. E o segundo motivo é que a infinitude de angústia que Clarice expõe nessa obra é justamente a mesma inconformidade que possuo e que ela muito bem expressou em algumas partes cujo real significado é desconhecido. Um dia, talvez, eu deixe o meu cansaço iminente (aparentemente inexistente na autora — pela obra escrita — e talvez presente enquanto criatura perdida no mundo) para impor minhas percepções mais imprecisas dessa leitura. Por ora, deixo aqui trechos retirados da própria obra:
32
A palavra é a minha quarta dimensão .
Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida . O instante é semente viva .
Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio .
O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão . E a parte da roda que ainda não tocou , tocará num imediato que absorve o instante presente e torna - o passado . Eu , viva e tremeluzente como os instantes , acendo - me e me apago , acendo e apago , acendo e apago . Só que aquilo que capto em mim tem , quando está sendo agora transposto em escrita , o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar . Mais que um instante , quero o seu fluxo .
Liberdade ? é o meu último refúgio , forcei - me à liberdade e aguento - a não como um dom mas com heroísmo : sou heroicamente livre . E quero o fluxo .
(...) mal existo e se existo é com delicado cuidado .
(...) só a realidade me delimita .
(...) caminhada é longa , é sofrida mas é vivida .
(...) Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido . Eu não : quero é uma verdade inventada .
Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos , sem nenhum sentido utilitário : sou sozinha , eu e minha liberdade .
O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração . Deixo - me acontecer .
Minha aura é mistério de vida .
(...) da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve .
A densa selva de palavras envolve espessamente o que sinto e vivo , e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que fica fora de mim . A natureza é envolvente : ela me enovela toda e é sexualmente viva , apenas isto : viva .
Renuncio a ter um significado , e então o doce e doloroso quebranto me toma .
Escuta : eu te deixo ser , deixa - me ser então .
Como vês , é - me impossível aprofundar e apossar - me da vida , ela é aérea , é o meu leve hálito . Mas bem sei o que quero aqui : quero o inconcluso . Quero a profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente . A grande potência da potencialidade .
220
Sou limitada apenas pela minha identidade .
Não gosto do que acabo de escrever – mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu . E respeito muito o que eu me aconteço . Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço .
Agora é um instante . Já é outro agora . E outro .
Ouve - me , ouve meu silêncio .
Lê a energia que está no meu silêncio .
Sou - me .
Deus é o mundo . É o que existe . Eu rezo para o que existe ? Não é perigoso aproximar - se do que existe . A prece profunda é uma meditação sobre o nada . É o contato seco e elétrico consigo , um consigo impessoal .
O que mais me emociona é que o que não vejo contudo existe . Porque então tenho aos meus pés todo um mundo desconhecido que existe pleno e cheio de rica saliva .
A verdade está em alguma parte : mas inútil pensar . Não a descobrirei e no entanto vivo dela .
Vou te fazer uma confissão : estou um pouco assustada . É que não sei aonde me levará esta minha liberdade . Não é arbitrária nem libertina . Mas estou solta .
Não dirijo nada . Nem as minhas próprias palavras . Mas não é triste : é humildade alegre . Eu , que vivo de lado , sou à esquerda de quem entra . E estremece em mim o mundo .
De nada tenho vontade : estou pura . Não te desejo esta solidão . Mas eu mesma estou na obscuridade criadora . Lúcida escuridão , luminosa estupidez .
Sou o coração da treva
Ocorreu - me de repente que não é preciso ter ordem para viver . Não há padrão a seguir e nem há o próprio padrão : nasço .
Gosto é das paisagens de terra esturricada e seca , com árvores contorcidas e montanhas feitas de rocha e com uma luz alvar e suspensa . Ali , sim , é que a beleza recôndita está .
É o mínimo que posso fazer de minha vida : aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite .
O sol é a tensão mágica do silêncio .
Agora é um instante . Você sente ? eu sinto .
Nada existe de mais difícil do que entregar - se ao instante . Esta dificuldade é dor humana . É nossa . Eu me entrego em palavras
(...) descanso na melancolia .
Esse ar solto , esse vento que me bate na alma da cara deixando - a ansiada numa imitação de um angustiante êxtase cada vez novo , novamente e sempre , cada vez o mergulho em alguma coisa sem fundo onde caio sempre caindo sem parar até morrer e adquirir enfim silêncio .
Oh vento siroco , eu não te perdoo a morte , tu que me trazes uma lembrança machucada de coisas vividas que , ai de mim , sempre se repetem , mesmo sob formas outras e diferentes . A coisa vivida me espanta assim como me espanta o futuro . Este , como o já passado , é intangível, mera suposição .
Confio na minha incompreensão que tem me dado vida liberta do entendimento , perdi amigos ,não entendo a morte . O horrível dever é o de ir até o fim . E sem contar com ninguém .Viver -se a si mesma . E para sofrer menos embotar - me um pouco . Porque não posso mais carregar as dores do mundo .
(...) a única coisa que me espera é exatamente o inesperado .
Vir - a - ser é uma lenta e lenta dor boa . É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar . E o sangue agradece .
A verdade última a gente nunca diz . Quem sabe da verdade que venha então . E fale . Ouviremos contritos .
(...) nem quero saber tanto . Basta - me que meu coração bata no peito .
Fico com medo . Mas o coração bate . O amor inexplicável faz o coração bater mais depressa . A garantia única é que eu nasci . Tu és uma forma de ser eu , e eu uma forma de te ser : eis os limites de minha possibilidade .
(...) a vida é sobrenatural .
(...) o melhor de mim é quando nada sei e fabrico não sei o quê .
Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição .
O instante é este . O instante é de uma iminência que me tira o fôlego . O instante é em si mesmo iminente . Ao mesmo tempo que eu o vivo , lanço - me na sua passagem para outro instante .
Só o errado me atrai , e amo o pecado , a flor do pecado .
(...) me sinto atraída pelo desconhecido . Mas enquanto eu tiver a mim não estarei só .
A loucura é vizinha da mais cruel sensatez .
A verdadeira incomensurabilidade é o nada , que não tem barreiras e é onde uma pessoa pode espraiar seu pensar - sentir .
Eu é que estou escutando o assobio no escuro . Eu que sou doente da condição humana . Eu me revolto : não quero mais ser gente . Quem ? quem tem misericórdia de nós que sabemos sobre a vida e a morte quando um animal que eu profundamente invejo – é inconsciente de sua condição ? Quem tem piedade de nós ? Somos uns abandonados ? uns entregues ao desespero ? Não , tem que haver um consolo possível . Juro : tem que haver . Eu não tenho é coragem de dizer a verdade que nós sabemos . Há palavras proibidas . Mas eu denuncio . Denuncio nossa fraqueza , denuncio o horror alucinante de morrer – e respondo a toda essa infâmia com – exatamente isto que vai agora ficar escrito – e respondo a toda essa infâmia com a alegria . Puríssima e levíssima alegria .
A minha única salvação é a alegria . Uma alegria atonal dentro do it essencial . Não faz sentido ? Pois tem que fazer . Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas – porque é cruel demais , então respondo com a pureza de uma alegria indomável . Recuso - me a ficar triste . Sejamos alegres . Quem não tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez sequer a alegria doida e profunda terá o melhor de nossa verdade .
Ah viver é tão desconfortável . Tudo aperta : o corpo exige , o espírito não para , viver parece ter sono e não poder dormir – viver é incômodo . Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito .
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O melhor está nas entrelinhas .
Aquilo que ainda vai ser depois – é agora . Agora é o domínio de agora . E enquanto dura a improvisação eu nasço .